Quando a Google lançou os Google Pixel em 2016, ambos desenhados e fabricados pela HTC, a par com óculos VR e o Google Home, ninguém ficou alheio ao facto desta tentativa de criação de um ecossistema colocar a Google em concorrência directa com a Apple. Mas a estratégia não teve grande sucesso, graças a supostas vendas pouco expressivas dos Pixel, e nunca poderia ter, pois à Google faltava um conjunto de pessoas e capacidades de que a Apple goza desde sempre e a Google nunca teve.

A aquisição da Powered By HTC por $1.1 biliões de Dólares abre, por isso, uma nova era no mundo tecnológico, com potencial para revolucionar a forma como olhamos para a Google e todas as marcas deverão ter aí os seus olhos postos.

Dos Nexus aos Pixel: o que sempre faltou à Google

Há dez anos atrás, o iPhone constituiu uma revolução que mudou profundamente o panorama das tecnologias móveis. O Android representa exactamente o mesmo, mas encontra-se diluído por milhares de equipamentos e centenas de marcas. Não é segredo que de há vários anos para cá que a Google aspira a criar para si um branding semelhante ao da Apple, com maior controlo sobre o seu sistema operativo e o desenho dos equipamentos em que coloca o seu selo.

Mas a separação entre Apple e Google é astronómica: desde os anos 70 que a Apple cimentou para si uma capacidade de criar computadores e electrónica num sistema fechado sobre si mesmo. A Apple correu enormes riscos com esta estratégia: o Macintosh era um exclusivo seu, enquanto DOS e Windows se transformavam no motor que avançava a informatização da sociedade e a IBM ganhava sem dúvida a corrida pela disseminação de um sistema. A diferença é que, volvidos mais de 30 anos, a IBM acabou por sair do mercado do hardware a a Apple continua forte.

A diferença fundamental é que a Apple passou os últimos 30 anos a exercer um controlo restrito sobre o hardware em que coloca um sistema operativo só seu e sem qualquer licenciamento. Embora a Apple produza os seus equipamentos via Foxconn e recorra e inúmeros componentes off the shelf com componentes Qualcomm, Samsung ou Intel, e mesmo os seus processadores sejam fabricados por especialistas como a TSMC, a Apple controla estritamente as especificações dos seus dispositivos e, mesmo baseando-se em arquitecturas da ARM, desenha do início ao fim os seus chips e outros componentes.

Google Pixel 2
O último Google Pixel foi desenhado e fabricado pela HTC.

A Google, pelo contrário, sempre recaiu sobre parcerias com OEM para criação dos Nexus e agora dos Pixel. A decisão final é da Google e os requisitos também, mas o controlo exercido é muito inferior, e não há nenhum hardware em nenhum smartphone Google que possamos dizer que é específico da Google. Tudo isso muda.

Com a aquisição da HTC, a Google pode ser a Apple

Para sermos claros, há muito que se sabe que a Google tem uma aspiração forte a ser um player no mundo do hardware e tornar-se mais independente das OEM com quem é parceira. O seu problema sempre foi como conseguir agir em nome próprio, sem perder a mão no sistema Android.

Mas os passos têm sido dados de modo claro: em Junho a Google contratou um dos engenheiros primordiais nos chips da Apple, Manu Gulati, claro sinal que quer reformular o modo como concebe os seus dispositivos, potencialmente com tecnologias próprias, fechadas aos restantes parceiros. Anteriormente, em 2011, a Google tinha pago fenomenais $12.5 biliões de Dólares, para a vender pouco depois à Lenovo, num negócio que ainda hoje é amplamente discutido. Dizem as más línguas (ou os entendidos) que o negócio primordial foi a capacidade para deitar as mãos a largos milhares de patentes da Motorola.

A história do Android não se faz sem o HTC Hero.
A história do Android não se faz sem o HTC Hero.

Mas faltava um último passo fundamental: a aquisição de uma estrutura e um know-how que a Google não poderia adquirir em tempo útil apenas com contratações e formação de equipas. Face ao negócio com a HTC, a Google terá do seu lado 4,000 funcionários com experiência irrepreensível na concepção de smartphones ao longo de todas as fases até ao fabrico final.

A Google consegue isso hoje, graças a circunstâncias muito particulares, num ecossistema em que mesmo os gigantes podem cair. Face aos doze biliões pagos pela Motorola, o bilião gasto com a HTC é uma pechincha.

A partir de hoje a Google muda fundamentalmente

Relembramos que a Apple tem mais de trinta anos no desenvolvimento em paralelo de hardware e software. A Google, apesar de Rick Osterloh estar à cabeça da divisão de hardware, é fundamentalmente uma empresa de software.

Até hoje.

O primeiro Nexus foi um produto HTC, o icónico Nexus One.
O primeiro Nexus foi um produto HTC, o icónico Nexus One.

Mesmo com os Nexus e em certa medida com os Pixel, a Google foca-se nos serviços. Começa hoje a ser uma empresa de hardware de pleno direito .

Haverá uma mudança que parecerá discreta mas será gigantesca: o que vier a seguir terá um carimbo Made By Google inquestionável, um lema já rodado com os Pixel.

madebygoogle_logo_banner

O branding será favorecido por isto: qualquer Pixel não será fabricado por A ou B, mas pela própria Google. Haverá maior reconhecimento de marca da Google como fabricante, não como somente algo que temos de modo gratuito e que nos permite jogar jogos sem pagar.

O que pode correr mal

O negócio é impressionante, mas tem sempre algum risco associado.

O risco mais óbvio é que, apesar do impulso dado pela aquisição da HTC, a Google não consiga impor-se rapidamente como uma alternativa ecossistémica à Apple, o que poderia ter um peso no seu crédito.

Mas o sucesso é também um risco potencialmente elevado. Nos últimos anos a Google lutou sempre contra a fragmentação do sistema Android. Afinal, como empresa de serviços, interessa-lhe que estes serviços corram adequadamente em todas as alternativas no mercado.

Por isso a Google sempre soube dar aos fabricantes requisitos mínimos para cada versão do seu sistema operativo, e controla estritamente os Google Services que não podem ser incluídos num equipamento sem aprovação prévia da Google, daí que muitos equipamentos Chineses não os incluam de raíz.

O Android em si mesmo é, obviamente, Open Source e tornou-se no que é pela relação excelente entre a Google e imensas OEM. De hoje para amanhã, ao fabricar os seus próprios equipamentos, a Google torna-se uma concorrente dos seus parceiros.

Procurarão as principais marcas criar o seu próprio sistema operativo e ecossistema? A Samsung já tem o Tizen, e remontam a 2016 os rumores de que a Huawei poderá desenvolver o seu próprio sistema operativo.

Por então, Richard Yu clarificou que a Huawei continuará a usar o Android enquanto a Google o disponibilizar. É uma condicionante peculiar porque abre as portas a que a Google não o disponibilize.

O desafio para a Google será conseguir competir com a Apple sem esfriar a relação com as OEM. Será que o consegue? Será que o mercado lidará bem com uma potencial fragmentação?

Só o tempo o dirá mas, para a Google, o futuro é hoje sorridente.

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