A tecnologia traz vantagens inegáveis para a qualidade de vida das sociedades modernas, contribuindo para o nosso bem-estar, saúde e salvando inclusivamente vidas, como a pandemia da COVID-19 bem provou. Não é necessário esforçarmos demasiado a mente para percebermos que apenas há meio século atrás, um vírus desta capacidade teria causado inúmeras mais mortes. Não haveria teletrabalho, sistemas de saúde tão avançados, plataformas de passageiros para libertarem a sobrelotação dos transportes. Mas é preciso combatermos a ideia que se a tecnologia pode, então é positivo que o faça. Existem, claro, provas mais do que evidentes do contrário.

Vou começar pelo início: os mais atentos terão notado que a Xiaomi lançou o CyberDog, um robô ligeiramente semelhante ao Spot da Boston Dynamics em configuração geral. Com este projeto open source, a Xiaomi criou um extraordinário robô com muito potencial para ajudar a humanidade em situações muito específicas. O CyberDog pode monitorizar zonas perigosas, sobreviver em locais onde existam gases e elementos biológicos que causariam a perda de vidas. Com um preço que fica abaixo dos €1500, o CyberDog vai inquestionavelmente mudar para sempre o mercado para este tipo de equipamentos.

O vídeo oficial da Xiaomi é algo saído de um sonho febril de ficção-científica. O CyberDog caminha, sobe escadas, faz piruetas com uma agilidade impressionante e está pronto para obedecer a comandos de voz por parte do dono. A Xiaomi chama-lhe “bio-inspirado”, o mesmo que dizer que é inspirado em animais, e obviamente é um excelente ponto de partida. O Homem vive da biologia e na biologia encontra as analogias para um robô. Afinal, se a biologia funciona, porque não usar os seus princípios básicos.

O vídeo é impressionante e fascinante, concordamos?

Então, dizia eu no início que a Humanidade vive algo presa no seu egocentrismo científico: eu posso, eu faço, porque a ciência é intrinsecamente boa. Há provas do contrário claro: a poluição, a destruição dos ecossistemas, são consequências diretas da utilização de tecnologia sem avaliações corretas sobre os seus impactos. Como Heidegger postulou em tempos, a ciência não é intrinsecamente “boa”, é puramente neutra, e requer análise crítica, ética e deontologia para ser aplicada sem impactos negativos. Heidegger viveu em primeira mão eventos que o levaram a perder a sua crença na pureza da técnica moderna.

Um exemplo é a introdução da perca no lago Vitória. Antes dos anos 50, o Lago Vitória em África era uma fonte de alimento e comércio para inúmeras sociedades em seu redor, o lar para mais de 500 espécies nativas. Com a melhor das intenções, no entanto, a perca do Nilo foi introduzida no lago de forma a criar uma fonte de rendimento para as populações. O desastre ecológico foi devastador. Não se sabe bem como ou quando a perca do Nilo foi introduzida, mas sabemos que foi propositadamente. No final do século passado, já só era possível pescar três espécies de peixes no lago, enquanto a pesca intensiva e desesperada quase exterminou a própria perca, deixando um lago sem comida para dar. As populações costumavam secar o peixe ao sol, impossível com a perca, peixe demasiado gorduroso, alterando profundamente a dinâmica alimentar e económica, e se nem todos concordam que a introdução tenha sido um desastre, o mero facto de que é um caso de estudo mostra que um sucesso certamente não foi.

Portanto, no fundo, a ciência é sempre sempre feita (ou quase) com boas intenções: o melhoramento da humanidade, a nossa evolução, a nossa felicidade. Todas as espécies vivem numa ânsia de reprodução, perpetuação da sua linhagem, e o ser humano não é diferente, porquanto o seu intelecto acabe por cristalizar a sua vontade de perpetuação não apenas nos descendentes biológicos, mas também nas suas criações artísticas e tecnológicas. O Ser Humano tem uma ânsia existencial de se reunir com o conceito de “criador”, evoluindo a espécie desde muito cedo no conceito místico-religioso de um criador do qual emergimos e para o qual nos dirigimos no além. O regresso para a criação é um tema transversal a todas as civilizações humanas conhecidas.

Mas Got is tot, certo?

Deus está morto. No final da segunda guerra mundial os seres místicos das florestas e os anjos no céu foram substituídos pelos artefactos tecnológicos da nossa modernidade, os E.T.s, os OVNIs. Com Deus morto, o Homem mostrou desde logo uma sede infindável de se conciliar com o conceito de criador, sendo este último ele próprio. Durante séculos, o tabu religioso foi o grilhão na evolução da ciência e, em algumas religiões, continua a ser. O mundo Ocidental deixou para trás a sua pele religiosa demasiado depressa, em poucas décadas deitando fora a orientação religiosa de milhares de anos, e substituindo forçosamente a sua ética por uma ética laica que ainda está, na verdade, em formação.

Com isto digo o quê? Que Oppenheimer e outros mais do que vestiram a sua pele de criadores e e impulsionadores do pensamento científico ao contribuírem para a bomba atómica, para perceberem com choque bem mais tarde do que seriam as consequências, tendo-se tornando proponentes dum banimento das armas atómicas. Digo que a humanidade ainda cria primeiro a pensar no que pode fazer, depois no que poderão ser as consequências. Não é porque Asimov tenha postulado as leis da robótica que o livro deontológico da robótica, cibernética e inteligência artificial esteja já escrito.

A Humanidade está na infância destas descobertas extraordinárias e está a tentar criar primeiro, enquadrar depois. Mas o que me arrepia realmente no CyberDog?

Por tudo o que de fascinante pode ser, o CyberDog não quer parecer uma máquina. A sua pose, as pequenas “brincadeiras” do marketing com os movimentos parecem mostrar um certo pudor em ser uma máquina, criando uma mímica da vida. Como criadora, a Humanidade não é um deus omnipotente, omnipresente, omnisciente. Está profundamente limitada ao seu antropocentrismo e à sua visão do universo. As suas criações dificilmente conseguem transcender as nossas limitações.

Arrepia-me uma Sophia que tenta simular emoções humanas porque os mais ligados à tecnologia se calhar não conhecem Damásio, e confundem expressão facial com emoção, algo profundamente endoquímico e neurológico que é incontestavelmente sistémico. Sophia não simula emoções, simula a mentira de um psicopata adaptado que não sente nada, mas finge sentir. Arrepia-me a necessidade dos criadores do CyberDog de tentarem sequer oferecer-lhe movimentos que simulam a diversão de um patudo em vez da pura mecânica funcional que deve assistir a um robô. Arrepia-me um pouco que a mecânica e a robótica necessitem fingir um simulacro de vida e sentimento, como se aquilo que nos faz seres vivos, Humanos ou animais, pudesse ser substituído por um simulacro, uma linha de código probabilístico numa cadeia de eventos. A Humanidade não conhece suficientemente bem a vida e o sentimento, e não sabe há milénios lidar com eles, muito menos com eles nos outros. Um livro de história é fundamentalmente milénios de seres humanos incapazes de se auto-conhecerem e empatizar com o outro.

Arrepia-me porque o ser Humano tem uma estranha tendência para ligações afetivas com objetos inanimados que não oferecem gratificação emocional de volta (vide “efeito Tamagotchi”), facilmente desenvolvendo culpa e remorso por serem responsáveis pela extinção de uma vida que não existe. Se podemos hoje dizer de boca cheia que temos “amor” por uma personagem de um jogo, quando o “amor” é obrigatoriamente recíproco e requer uma relação que um simulacro não pode oferecer, isso significa que no dia em que as máquinas e os seus simulacros de vida, emoções e sentimento forem aceites como tal, também os seres humanos serão facilmente aceites como máquinas, matéria-prima dispensável. Já o foram no passado, numa altura em que toda a vida era realmente preciosa e nada a conseguia simular.

Se calhar reformulo a questão: que me arrepia no CyberDog? Em particular, nada. Arrepia-me a forma como a humanidade sabe demasiado pouco de lidar com os seus próprios sentimentos para andar a tentar simulá-los em máquinas.

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