Já todos nos demos conta daquela situação embaraçosa em que falamos de alguma coisa durante algum tempo, para depois termos o Facebook ou outra rede social a sugerir-nos esse tema ou produto. Se o Facebook já negou completamente que ouça as nossas conversas, isto não pode tranquilizar-nos porque sabemos agora que estávamos simplesmente a olhar para o lado errado e centenas de jogos da Play Store estão a espiar os nossos hábitos televisivos através do microfone do smartphone.

Os especialistas acreditam que, frequentemente, quando existe esta coincidência entre aquilo de que falamos e o que o Facebook nos sugere, se trata apenas de estarmos mais predispostos a ver publicidade a algo que está presente na nossa mente.

Não é o caso que relata o New York Times: a espionagem é clara, constante e legal: mais de 200 jogos perfeitamente “inofensivos” da Play Store estão, na verdade, a usar constantemente o microfone dos nossos smartphones para detectar os nossos hábitos televisivos, incluindo séries, filmes e mesmo quais reclames ouvimos ao longo do dia. Nem é necessário que os jogos se encontrem a correr, já que permanecem em segundo plano a recolher informações. Agora já sabemos porque a bateria não, aguenta, certo?

Alphonso, o nome do culpado

Todas as apps têm em comum um software chamado Alphonso, de uma startup do mesmo nome cujo core business é vender dados de visualização televisiva a agências de marketing. O que o Alphonso não é suposto fazer é espiar ilegalmente e secretamente milhões de utilizadores sem os alertar, nem garantir o seu direito à privacidade.

Segundo o NYT, o software é extremamente capaz e, não só identifica o que vemos na televisão, como é capaz de cruzar os dados e relacionar estes dados com locais que visitamos nas férias ou regularmente.

Pelo contrário, o software não parece gravar discurso humano, ou assim a Alphonso o declara. Contactada pelo jornal, a Alphonso justifica-se, indicando que o que o seu software faz está perfeitamente declarado nas descrições das apps e o cliente é que tem que garantir o acesso ao microfone do dispositivo.

A TekGenius seguiu o mesmo método do NY Times para verificar se estas apps de facto alertam convenientemente os consumidores, procurando na Play Store por “Alphonso Automated”. Rapidamente, encontramos jogos como “Beer Pong: Trickshot” e “Highway Racing”, num total de perto de 200 jogos que incluem o software da Alphonso.

Abrimos logo o Beer Pong, não fosse este o primeiro jogo a aparecer e, indo à descrição da app encontramos o seguinte:

This app is integrated with Alphonso Automated Content Recognition (“ACR”) software provided by Alphonso, a third-party service. With your permission provided at the time of downloading the app, the ACR software receives short duration audio samples from the microphone on your device. Access to the microphone is allowed only with your consent, and the audio samples do not leave your device but are instead hashed into digital “audio signatures.” The audio signatures are compared to commercial content that is playing on your television, including content from set-top-boxes, media players, gaming consoles, broadcast, or another video source (e.g., TV shows, streaming programs, advertisements, etc.). If a match is found, Alphonso may use that information to deliver more relevant ads to your mobile device. The ACR software matches only against known, commercial audio content and does not recognize or understand human conversations or other sounds.For more information, Please visit Dumadu’s privacy policy.

Em suma, este jogo (e centenas como ele) gravam áudio de qualquer fonte de vídeo, seja uma TV o uma consola e compara-o a uma assinatura digital para descobrir o que estamos a ver. A venda destes dados a agências de marketing permite depois a estas refinarem o seu target e injectarem publicidade mais direccionada aos consumidores.

Não, não aceitamos isto conscientemente

Para a esmagadora maioria dos utilizadores do Android e iOS (também afectado), estes jogos são de confiança ao estarem colocados em lojas sancionadas e vigiadas pelas grandes tecnológicas. Para descobrirmos que nos estão a recolher informações do quarto e sala de estar temos que carregar no relativamente discreto “Ler Mais” e, depois, temos que ser algo versados em Inglês, o que é razoavelmente difícil de aceitar, tendo em conta quantos milhões de pessoas não o são, principalmente quando falamos de crianças.

O facto do aviso se encontrar num “Ler Mais”, e não imediatamente disponível, coloca em causa que as pessoas que instalam estas apps estejam de facto conscientes do que estão a fazer, tendo em conta que não há sequer a obrigatoriedade de aceitar estes termos antes de podermos instalar o jogo ou app.

Psicologicamente, a ideia de milhões de apps e jogos gratuitos é tão nova, que o consumidor não está simplesmente consciente de que (como se costuma dizer) quando o produto é barato, então o produto é ele.

Práticas altamente questionáveis

Não obstante a declaração de intenções da app, a gravação de áudio é altamente questionável, já que não recebe a prioridade devida. Diversas empresas têm sido apanhadas a recolher informações privadas de modo pouco ou nada claro, tendo-se generalizado a ideia de que basta dizer que fazemos algo para automaticamente colocar nas costas de utilizadores pouco informados a responsabilidade de abdicarem dos seus dados privados.

Do outro lado da moeda, é óbvio que jogos e apps gratuitos necessitam de modos de monetizar os seus esforços, porque ninguém deve trabalhar gratuitamente. Mas estes jogos já vivem de publicidade exibida durante a sua utilização, parecendo agora descobrir modos de ganharem ainda mais dinheiro, mesmo quando o utilizador não os joga.

No limite, milhões de utilizadores que até aceitam esta contrapartida não estão capacitados para depois limitarem os dados em segundo plano, impedindo as apps de lhes consumirem dados e bateria sem que se apercebam disso. Portanto, além das consequências em termos de privacidade, há consequências no hardware.

Um jogo é uma coisa, uma dezena será outra. Ainda mais alarmante – e completamente fora do controlo destas empresas – é o enorme risco de segurança. Por mais que estas empresas garantam quão secretos são os dados, e quão protegidos se encontram, várias fugas de dados ao longo de 2017 mostraram que não há sistemas infalíveis. Encher o smartphone de apps que acedem a porções do smartphone de que não precisam abre ainda portas para explorações de vulnerabilidades por parte de atacantes mal intencionados.

Os gigantes tecnológicos precisam adaptar-se e também os legisladores, para colocar em relevo e destaque o facto simples de que milhares de apps não nos informam conveniente do que recolhem nos nossos lares.

Previna-se desde já 

Os consumidores podem proteger-se facilmente, basta que o queiram.

Em primeiro lugar, não instale apps a torto e a direito para ver se gosta. Antes de o fazer, leia sempre a descrição e que dados serão recolhidos: caso não lhe agrade, não instale.

Quando instalar uma app, não lhe dê todas as permissões que solicitar. Se alguma lhe parecer excessiva, não a conceda.

Tenha especial cuidado com o que as suas crianças instalarem no smartphone. Você é o adulto, você é o responsável pela sua segurança.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui